19-jun-2020
E a pergunta é: pedalar ou não no período de quarentena e isolamento social?

Com certeza você já se fez esta pergunta inúmeras vezes. Creio que até tenha chegado a conclusões distintas em algumas delas. No entanto, vários são os casos que nos remetem à reflexão sobre esta questão. Vamos a dois deles nos últimos dias.
Dois jogadores do Clube de Regatas Flamengo (Diego e Filipe Luís) foram flagrados furando as determinações do clube e pedalando em área pública. Ambos em situações isoladas, mas nitidamente desrespeitando o que foi imposto pelo clube e solicitado a todos os cidadãos que podem, que permaneçam em casa.
Outro caso notório foi o Tour do Fred, ex-centroavante do Cruzeiro que percorreu cerca de 600 km a partir da capital mineira para se apresentar ao novo clube, o Fluminense, na capital carioca. Nesse tour/desafio, o jogador disse que doaria uma cesta básica por cada quilômetro pedalado, além de uma ação de mobilização e marketing com alguns patrocinadores e com a torcida do novo clube, fato que poderá gerar mais centenas ou até milhares de cestas básicas que, com certeza, serão muito bem recebidas pelas famílias carentes atendidas com essa ação solidária.
Confesso que no caso do Fred, li alguns comentários abaixo do texto publicado no portal G1 e muitos questionavam o ato de furar o isolamento, outros debochavam da situação econômica do clube carioca (Fluminense), falando que o clube não tinha dinheiro para pagar a passagem aérea e, por aí vai. Alguns criticavam o fato de que ele estava (na época) pedalando o trajeto numa bike Sense elétrica, o que tonaria o desafio muito fácil, portanto, buscavam tirar os méritos do esforço físico do jogador.
Mas, voltando à pergunta inicial, como avaliar as ações destas três figuras públicas neste momento de quarentena e de isolamento social? Vejam que usei o termo avaliar, de forma muito intencional. Não estou falando de julgamentos, se estão corretos ou errados. Só avaliando se as ações são as mais adequadas ou não, se colocam o outro em risco ou não.
Aí, pesquisando um pouco sobre esta questão do uso da bike neste período de pandemia, li algumas matérias falando que em Nova York houve um aumento de 50% no número de viagens de bikes pela cidade. Em Bogotá, na Colômbia, a prefeitura instalou de forma temporária mais 117 km de ciclofaixas para incentivar ainda mais o uso de bikes nesse período, sendo encarado como uma forma de diminuir o contágio pelo novo Coronavírus, uma vez que ao usar sua bike o cidadão não estará utilizando o transporte público, aliviando a demanda sobre esse modal.
Ainda na mesma linha, a Federação Britânica de Ciclismo chegou a enviar uma carta ao ministério da saúde birtânico defendendo as vantagens do uso das bikes neste período de pandemia e isolamento, como uma forma de conter a expansão do vírus e melhorar o condicionamento físico das pessoas, fato que contribuiria para a redução dos impactos da Covid-19 nas pessoas que vierem a se infectar.
Bem, se você chegou até aqui deve estar achando que, dados os argumentos e exemplos que utilizei sobre os benefícios do pedal à qualidade de vida, que vou defender as ações dos 3 jogadores citados anteriormente. Pois é, a resposta é não. Se me perguntassem o que eu faria, diria que exatamente o que estou fazendo agora. Desde que foi decretada a quarentena e o isolamento social, minha bike permanece parada por exatos 90 dias exatamente no mesmo lugar, embora a vontade de pedalar seja muito grande. Tenho certeza de que muitos outros ciclistas urbanos ou não, integrantes do grupo Amigos do Cicloativo ou não, mas que NÃO USAM usam a bike para trabalhar ou irem ao trabalho, também estão esperando toda esta situação passar para, com muita segurança, dentro das regras sugeridas pelos agentes de saúde e entidades competentes, voltarem à prática dos pedais, dentro do cenário que está sendo chamado de “novo normal”, termo bem bonito mas que não sabemos exatamente o que significa.
No caso dos jogadores Diego e Filipe Luís, ambos do Flamengo, além de serem pessoas públicas que influenciam milhares de seguidores, são atletas muito bem pagos pelo clube, e ao furaram uma determinação, além da falta de compromisso coletivo, de se exporem e exporem o outro desnecessariamente ao risco, também podem gerar uma crise na gestão do grupo de jogadores, fato que torna o simples ato de pedalar algo bem mais complexo quando pensamos no coletivo neste momento de isolamento social.
Em relação ao desafio do Fred, embora reconheça todos os argumentos em defesa da ação solidária, fiquei pensando nos inúmeros pequenos povoados que integram o trajeto da Estrada Real, no trecho que foi percorrido pelo jogador, e em seus moradores que, ao saberem que um grande atleta, figura pública conhecida, ex-jogador de seleção brasileira, passaria por lá num dia qualquer de junho.
Se eu fosse morador de um desses povoados, vilarejos e pequenas cidades, ficaria muito atento para conseguir fazer uma foto com o ídolo, ainda mais em tempos que a redes sociais podem render inúmeros likes. E, o jogador, mesmo sabendo de todos os riscos, duvido que tenha se negado a este gesto de gentileza com um fã/torcedor, afinal, foi somente uma foto, não é mesmo?
E aí voltamos ao momento atual, às recomendações dos agentes de saúde e os riscos pessoais e coletivos da atividade para formular uma outra pergunta. Será que não seria possível a articulação de uma ação solidária sem tantos riscos? Minha resposta é, com certeza, sim. E, nesse caso, provavelmente ainda chamaria mais a atenção por focar em duas preocupações fundamentais que são a segurança das pessoas envolvidas na atividade e o desafio de arrecadar alimentos na ação solidária aos mais necessitados.
Por isso, para finalizar quero destacar que muitas vezes as intenções podem ser as melhores possíveis, os argumentos bem razoáveis e até justos mas os interesses coletivos devem prevalecer aos individuais ou sairemos da pandemia da mesma forma em que muitos entramos, ou seja, autocentrados, individualistas olhando somente para os nossos interesses ou paixões pessoais.
Não faço ideia do que virá depois desta pandemia, no entanto, seria maravilhoso se milhares de pessoas se tornassem mais responsáveis social e ecologicamente, comprometidas cada vez mais com o CUIDADO. Cuidado com o outro, com a natureza, com a vida, com a espiritualidade (não estou falando de religiosidade), enfim, com a essência do Ser Humano.
Tenho certeza de que a bicicleta e os pedais podem nos ajudar neste caminho. Afinal, ao pedalamos mudamos nosso ritmo frenético de vida na metrópole por um mais lento, respeitamos e reconhecemos nossos limites, observamos mais intensamente as inúmeras dimensões e possibilidades da nossa relação com o cotidiano e com a cidade. Portanto, que possamos aproveitar este momento de dificuldade para pensarmos seriamente no que queremos como modo de vida e de que forma o uso da bicicleta pode nos levar, não só a pequenas, mas também a significativas mudanças no nosso modo de vida.
Por Profº Paulo Mendes, ciclista urbano, bacharel e licenciado em Geografia pela PUC/SP e voluntário do Instituto Cicloativo do Brasil.
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